Falo com minha irmã: falando e vivendo o amor por Fernanda, o faço com minhas irmãs negras. “Para Fernanda, minha irmã, com o amor que me mantém viva!” Andreia Beatriz Santos* Diante de tanta barbárie, de tanta brutalidade, de tanta violência e tanta dor, tem sido necessário, a cada dia, fazer o caminho de volta até o amor incondicional que, para mim, impulsiona todas as possibilidades de amar outras iguais a mim, para além do amor que recebi dos meus pais: o amor por minha irmã, Fernanda. Falo com Fernanda e ao falar com Fernanda falo com as minhas irmãs, mulheres negras. Tem sido necessário reviver a infância, as desavenças, as dúvidas, as disputas, as risadas, as conversas na madrugada, o chimarrão** tarde da noite na cozinha, as mentiras combinadas para os demais, os momentos de confidência. Todo o elo formado ponto a ponto, traço a traço, dia a dia, mês a mês, ao longo de anos. Esta prática nos fortaleceu enquanto mulheres negras. O racismo sempre esteve a espreita de nossa união, de nosso amor, da nossa maneira de combatê-lo: juntas, fortalecidas, unidas pelo amor e contra a dor. A sobrevivência, a resistência e a reação ao racismo, fazem parte da vida de mulheres negras desde sempre. Ainda hoje, à distância, a nossa experiência coletiva é vivida. Como diz Christen Smith (2014), o corpo da mulher negra é uma experiência coletiva global construída pelos desafios que as mulheres negras enfrentam em torno do mundo. A nossa experiência coletiva é vivida sem a necessidade de falarmos disto, sem a necessidade de explicarmos uma a outra quais os medos, as angústias, as dores, as sensações de sermos mulheres negras em um mundo que surge de África e nos nega por sermos de lá. Ao nos olharmos, ao respirarmos, ao sorrirmos e chorarmos temos sensações reconhecidas por nós “aqui ou em qualquer lugar”. Por que crescemos juntas, mas por que crescemos negras, conhecemos esta experiência, temos esta vivência, praticamos a resistência. Nestes dez anos de Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, ao lado de mulheres negras atingidas pela guerra racial que vivemos, apreendo muito e ao olhar uma irmã negra em sua dor, posso sentir a mesma dor. Da mesma maneira que descobri esta dor com minha irmã e as maneiras pelas quais podemos resistir e reagir, também conheço as dores das minhas irmãs negras. A dor tem estado presente em nossas vidas. Mulheres negras não poupam esforços para defender e garantir a vida de suas famílias. Um sem número de mortos, um sem número de vítimas. A imensurável sequela física e psicológica da prática da opressão racial em nossas vidas, em nossas almas, em nossa existência. Assim como a dor das mulheres negras do passado nos atinge hoje, a dor das mulheres negras hoje, nos atinge hoje. Em um dia de plantão em um hospital, ao dar assistência à saúde de uma mulher negra cuja queixa principal era dor no peito há aproximadamente um ano, perguntei como estava sua vida. Ela rapidamente e muito irritada, me perguntou: “ O que importa a porra da minha vida, se tô com dor no peito?” Olhei profundamente em seus olhos e repeti a pergunta. A resposta veio por meio de 40 minutos de choro profundo, acompanhado de mais 30 minutos de conversa sobre a liderança vital de uma mulher negra. Dar, cuidar e proteger a vida de famílias negras diariamente! Se a vida de mulheres negras importa quando estas tem dor no peito? Sou uma mulher negra. Aprendi com Fernanda. Não pretendo falar das referências científicas que dariam subsídios a esta afirmativa, mas do reconhecimento de algo que pouco se explora, reconhece e do qual poucas informações são fornecidas na formação médica, mas que se revela diante da experiência coletiva de ser mulher negra. Tão pouco estou aqui dizendo que toda a dor no peito de mulheres negras, mas que toda mulher negra que tiver dor no peito precisa ser acolhida com sua experiência coletiva. Não podemos subestimar a nossa experiência coletiva de dores. Quando falo com minhas irmãs negras posso falar em nossa experiência e do ponto de vista da nossa experiência. Como resultado disto, faço o caminho de volta e falo com Fernanda, com Aline, com Nega, Carmem, com Kayla, com Alysia, com Christen, com Lucia, com Ana Caroline, com Caroline Amanda, com Jamile, com Almerinda, com Bia, com Tita, com Maria das Dores, com Carmen, com Léia, com Cristiane, com Fuá, com Katiara, com Deise, com Rosemeire, com Débora, com Maria de Fátima com Luciana e tantas outras como eu. Hoje recebo visitas a cada dia de trabalho naquele hospital de uma mulher como eu que aprendeu a perguntar a outra como nós, como vai a vida. Falamos com Fernanda. *Andreia Beatriz é militante e coordenadora da Quilombo Xis-Ação Cultural Comunitária atuante nas vilas, ruas, favelas e prisões que impulsiona a Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou será Morto, uma organização que combate o genocídio do povo negro no Brasil. É médica, professora universitária. **O Chimarrão é uma bebida de origem indígena típica da América do Sul, muito consumida no Rio Grande do Sul, estado brasileiro onde nasci e cresci. O chimarrão é preparado com erva-mate e água quente, em uma cuia e consumido com uma bomba preferencialmente em grupo, cuja prática de consumo está ligada a tradição regional tendo como alguns dos objetivos, união e solidariedade.
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AuthorThe Silence Transformation Collective is a transnational, multi-lingual healing space for black women to share their reflections and thoughts on life and survival. It is inspired by Audre Lorde's [1984 (1977)] essay "The Transformation of Silence into Language and Action." There she writes, "I have come to believe over and over again that what is most important to me must be spoken, made verbal and shared, even at the risk of having it bruised or misunderstood." Here, we dare to speak and share, recognizing that our silence will not protect us. Archives
November 2017
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